sexta-feira, novembro 24, 2006

Café com Totonha



Se ela tinha 80? Não sei, mas que era uma senhora arretada...eu sei.
Marcelino Freire narrou "Totonha", no Encontro Natalense de Escritores,
e eu registro aqui.

Totonha

Capim sabe ler? Escrever? Já viu cachorro letrado, científico? Já viu juízo de valor? Em quê? Não quero aprender, dispenso.
Deixa pra gente que é moço. Gente que tem ainda vontade de doutorar. De falar bonito. De salvar vida de pobre. O pobre só precisa ser pobre. E mais nada precisa. Deixa eu, aqui no meu canto. Na boca do fogão é qeu fico. Tô bem.
Já viu fogo ir atrás de sílaba? O governo me dê o dinheiro da feira. O dente o presidente. E o vale-doce e o vale-linguiça. Quero ser bem ignorante. Aprender com o vento, tá me entendendo?
Demente como um mosquito. Na bosta ali, da cabrita. Que ninguém respeita mais a bosta do que eu. A química.
Tem coisa mais bonita? A geografia do rio mesmo seco, mesmo esculhambado? O risco da poeira? O pó da água? Hein? O que eu vou fazer com essa cartilha? Número? Só para o prefeito dizer que valeu o esforço? Tem esforço mais esforço que o meu esforço?
Todo dia, há tanto tempo, nesse esquecimento. Acordando com o Sol. Tem melhor be-á-bá? Assoletrar se a chuva vem? Se não vem?
Morrer já sei. Comer, também. De vez em quando, ir atrás de preá, caruá. Roer osso de tatu. Adivinhar quando a coceira é só uma coceira, não uma doença. Tenha santa paciência! Será que eu preciso mesmo garranchear meu nome? Desenhar só para a mocinha aí ficar contente? Professora, que valia tem meu nome numa folha de papel, me diga honestamente. Coisa mais sem vida é um nome assim, sem gente. Quem está atrás do nome não conta? No papel, sou menos ninguém do que aqui, no Vale do Jequitinhonha. Pelo menos aqui todo mundo me conhece. Grita, apelida. Vem me chamar de Totonha. Quase não mudo de roupa, quase não mudo de lugar. Sou sempre a mesma pessoa. Que voa.
Para mim, a melhor sabedoria é olhar na cara da pessoa. No focinho de quem for. Não tenho medo de linguagem superior. Deus que me ensinou. Só quero que me deixem sozinha. Eu e minha língua, sim, de passarinho entende, entende? Não preciso ler, moça. A mocinha que aprenda. O prefeito que aprenda. O doutor. O presidente é que precisa saber ler o que assinou. Eu é que não vou baixar a minha cabeça para escrever.
Ah, não vou.

Marcelino Freire, em Contos Negreiros.

www.eraodito.blogspot.com

2 Comentários:

Às segunda-feira, novembro 27, 2006 , Blogger meu paredro disse...

Pensável que só, Tam.

 
Às quarta-feira, novembro 29, 2006 , Blogger Chica disse...

hummm...que ótimo, lá vou eu lá.

 

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